quando eu vi a garota da agulha e ouvi a milly lacombe com a bianca santana tudo no mesmíssimo dia
e porque eu acho que temos que debater sempre a ideia de que o feminismo é a revolução que o mundo precisa
Eu estava conversando com essa minha amiga muito querida, daquelas amigas que guardamos no peito com muito carinho e respeito (às vezes, também, soltamos umas farpas, ficamos meio de bico, acabamos pisando em alguns ovos pras coisas voltarem ao normal, mas depois fica tudo bem de novo e a vida segue seu curso. São quase 10 anos que essa amizade me ajuda a construir quem eu sou e o que eu acredito na vida, seja pro bem ou pro mal, pra compreender o que faz sentido pra mim ou o que eu quero descartar). Bem, o teor da conversa: convidei essa amiga para ir num evento literário aqui na nossa região pra ouvir algumas escritoras que gosto; eu estava muito empolgada para que fôssemos no dia que a Milly Lacombe estaria lá. Comentei especificamente isso para convencê-la de que era um eventão, olha lá poxa, é a Milly Lacombe com a Bianca Santana! Pra mim, imperdível.
Eis que ela me responde o seguinte:
Bem, a única devolutiva lógica que encontrei nessa situação (que obviamente era uma piada na minha visão) foi:
Acontece que era mais ou menos piada, porque por um lado ela estava me atormentando um pouco, devia de estar entediada, e por outro lado, tinha uma ponta de verdade na fala dela. Não de “deixar de ser feminista”, porque aí não dá. A própria Milly Lacombe, coincidentemente nesta palestra, falou: com o tempo,
a gente passa a olhar para as coisas com certo olhar crítico, é como tirar uma venda dos nossos olhos. Quando a gente vê, não dá mais pra desver. Então, essa nossa visão crítica nos faz, justamente, ~~criticar tudo. Quer dizer, a gente fica meio chata pras coisas, até pra conversar. E não tem volta.
Admito, inclusive, que fiquei feliz com esse comentário dela, porque meu companheiro costuma dizer (em tom de reclamação) que tudo pra mim é política, que às vezes não tem nada a ver com a conversa e eu vou e meto política no meio.
Lacombe falou isso, que ela é uma chata, e eu gostei porque eu sou uma chata também, e é com orgulho, tá? Enfim, é nosso jeitinho meio Maria da Conceição Tavares de ser.
Só que ser política o tempo inteiro é o óh e cansa, sabe? às vezes a gente tem o desejo de largar todas essas pautas e viver nossa vida na alienação e ignorância mesmo, porque o sentimento de impotência é latente mas pungente, embora ele seja genuíno.
E aí foi muito doido ouvir Lacombe e Bianca Santana juntas porque a conversa sobre feminismo, que é esse nome grande e estigmatizado, é na verdade a construção mais viável de um mundo não sei se melhor mas possivelmente diferente. E eu digo que é muito doido porque a conversa com a minha amiga que não quis “renovar sua carteirinha feminista depois de vencida”, era justamente a respeito de como nós passamos a acreditar, muitas vezes equivocadamente, que o feminismo exige que sejamos todas feministas aborteiras-haters de homem-com suvaco cabeludo-bruxas que dançam com flores na cabeça a luz do luar-melhores amigas umas das outras, como se feminismo fosse um clube com dress code, e não simplesmente (sim, simplesmente) a luta para sermos reconhecidas como humanas. Ponto. Humanas como qualquer homem hétero branco cis que nunca precisou provar nada além de existir.
Quer dizer, tudo é uma questão política.
Ao final da palestra/bate-papo, minha amiga finalmente renovou o contrato e teve sua carteirinha de feminista atualizada (risos), porque é isso galera mulheres, a gente precisa debater mais e compreender mais também o que é que a gente está, de fato, reivindicando.
Mais tarde, nesse mesmo dia, depois de ter passado horas com minhas amigas mulheres e minha filha menina que é uma pequena feminista em construção (amo), eu cheguei em casa para passar um tempo de qualidade com meu companheiro que é um homem. E é um homem branco hétero cis que eu tanto gosto de mencionar aqui como o símbolo da hegemonia opressora mundial. Escolhemos um filme para assistir. Às vezes a gente pega indicação de filme na internet e às vezes a gente julga os filmes pela capa e vai no escuro mesmo. Escolhemos o filme A Garota da Agulha, que tinha uma cara meio cult e falava de primeira guerra mundial, então nos prometia muita coisa. A sinopse na plataforma de streaming que a gente viu dizia:
Bem, se você não viu o filme ainda e não gosta de spoilers eu sugiro que você faça uma pausa, vá lá assistir ao filme e depois volte para continuar a leitura daqui. Se você não liga pra spoiler ou não tem intenção de assistir ao filme, seguimos.
A tal descoberta repentina? A mulher carismática que supostamente dirigia uma agência de adoção, na verdade opera um esquema macabro. Ela oferece suporte às gestantes vulneráveis (oferecendo dinheiro e um suposto futuro para seus bebês), mas em um mundo pós-Primeira Guerra onde orfanatos são depósitos de miséria e ninguém quer mais crianças muito menos as pobres, sua 'solução' é outra: ela mata os bebês. Pra mim foi muito chocante. Karoline (a garota da agulha, grávida do patrão da fábrica) descobre a verdade de que a mesma mulher que a acolheu quando foi demitida por estar grávida é, na prática, uma assassina sistemática.
O filme joga na nossa cara o dilema: num mundo sem políticas públicas, sem rede de apoio, onde a guerra deixou todos em estado de trauma permanente, o que sobra para as mulheres? A solução da personagem é monstruosa, mas o filme nos força a refletir: e a sociedade que a criou não é igualmente monstruosa?
Prometo ser sucinta, mas olha só quantas camadas:
o moralismo por trás da atitude da tal mulher carismática
Num cenário de miséria no qual mulheres pobres não tinham apoio algum (alô Brasil 2025?), sua solução para os bebês indesejados é assassina-los, tornando-a uma criminosa hedionda. Me pergunto: não é moralismo barato condená-la isoladamente, quando toda a sociedade falhou? Quero dizer, se dá pra entender o tal do Thanos naquele filminho dos vingadores (é vingadores?) não deveria ser mais fácil tentar explicar, ainda que não justificasse, os ideais desta personagem em questão? Meu companheiro condenou a mulher até o dia seguinte quando ainda debatíamos o filme; numa ocasião anterior, ele tinha ficado horas tentando me explicar o contrário: porque o Thanos era incompreendido (olha só o recorte de gênero: a mulher é condenada sem apelação. Será que o problema é a violência... ou quem comete?").
a eterna infantilização masculina e responsabilização da mulher por T-U-D-O.
no filme (e diga-se de passagem, na vida real também acontece) o dono da fábrica é, nas palavras do meu companheiro, um bundão: ele até parece se importar com a garota da agulha, a Karoline, mas quando ele decide a apresentar à sua mãe (que tem aquelas características de quem toma as rédeas de tudo na família e controla todos a sua volta), a mãe simplesmente diz para a garota que “meu filho até pode se casar com você, mas não terá mais acesso ao meu dinheiro” O querido, é claro, começa a chorar. Ele deve bem de ter uns 40 anos, o cara. Daí o adjetivo bundão. Mas a verdade é que a grávida, muito mais jovem que ele, precisa contornar a situação da forma que dá, agora desempregada já que a mãe do maluco “dispensa seus serviços”.
a importância do debate de políticas públicas mais de um século pós grande guerra
por que é que ainda estamos debatendo isso, se há anos a mesma história se repete? Isso pra mim quer dizer que temos mesmo é que continuar o debate, abrir o diálogo e resgatar os motivos pelos quais falamos, incansavelmente (até cansar rs) sobre igualdade. E debater feminismo, pra mim, é falar de igualdade, do mesmo jeito que a Bianca Santana trouxe na fala dela.
E dá pra abrir tópico 4. maternidade compulsória; 5. romantização da pobreza; 6. estado ausente em questões de saúde pública… imagine!
Eu sei que parece que não temos andado pra frente e a verdade é que eu acho que não temos mesmo, alías acho que temos é nos tornado mais cínicos. Mas aí lembro da minha amiga e sua “carteirinha renovada”. Talvez a esperança esteja aí: na capacidade de rir da própria chatice, debater até cansar, e ainda assim seguir acreditando que um outro mundo é possível, mesmo que a gente não viva pra ver.
Você já renovou sua carteirinha feminista?